Teoria do Caos, a angustia de Sartre e a banalidade do mal
A imprevisibilidade como ponto de ligação entre a ciência, o existencialismo e a filosofia política
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N a década de 1960, Edward Lorenz (1917–2008), que era meteorologista e matemático do MIT, queria compreender o clima. Usando um computador Royal McBee LGP-30 — que pesava cerca de 360 kg — , ele simulava um modelo climático simples — uma simplificação extrema dos processos de convecção atmosférica. Certo dia, ao repetir uma simulação, Lorenz inseriu valores arredondados a três casas decimais (em vez de seis) como condições iniciais. Após algum tempo, o resultado da simulação foi radicalmente diferente do anterior, que considerava números com seis dígitos. Inicialmente, ele acreditou que a diferença era decorrente de algum erro na simulação. Talvez houvesse falhas no tambor magnético ou algum erro no algoritmo implementado. Naquela época, os computadores ainda eram novidade e pouco confiáveis. No entanto, ao investigar com mais cuidado, Lorenz percebeu que o motivo era o arredondamento das condições iniciais. O computador armazenava números com seis casas decimais, mas imprimia apenas três. Quando ele digitou os valores arredondados (por exemplo, 0,506 em vez de 0,506127), a diferença parecia mínima, mas crescia exponencialmente com o tempo. Foi então que ele percebeu que a divergência não era um erro do computador, mas uma característica do próprio sistema dinâmico. Isso o levou a formular a ideia de sensibilidade às condições iniciais, popularizada posteriormente como “efeito borboleta”. Ou seja, pequenas alterações nas condições iniciais de sistemas complexos (como o clima) podem resultar em consequências imprevisíveis.
“O bater de asas de uma borboleta no Brasil pode desencadear um tornado no Texas?” — Edward Lorenz.
Em 1963, Lorenz publicou o artigo “Deterministic Nonperiodic Flow”, no qual apresentou o famoso atrator de Lorenz, que gera uma estrutura geométrica fractal no espaço de fases (o “atrator estranho”, ver abaixo). Sua descoberta demonstrou que mesmo sistemas perfeitamente determinísticos — governados por leis matemáticas exatas — são capazes de exibir um comportamento imprevisível a longo prazo, devido à sua extrema sensibilidade às condições iniciais.
Um sistema determinístico é aquele no qual, dadas as condições iniciais e as forças que atuam sobre ele, é possível prever seu estado no futuro— como a posição de uma partícula ou a tensão em um circuito elétrico — com total precisão. Se conhecemos a velocidade, a aceleração e a posição de um carro em uma estrada, por exemplo, podemos calcular sua posição futura de maneira exata. O mesmo raciocínio vale para o passado: basta retroceder o tempo nas equações de movimento para saber onde o carro estava uma hora antes. Em outras palavras, em um sistema determinístico, passado e futuro são inteiramente previsíveis.
Já em um sistema aleatório, não é possível prever o resultado exato de um experimento, mas apenas as probabilidades associadas a cada possível resultado. Ao lançar uma moeda, por exemplo, não se sabe se o resultado será cara ou coroa, mas é possível calcular a probabilidade de cada um ocorrer. Após a repetição de um grande número de experimentos, podemos demonstrar, pela lei dos grandes números, que a frequência de ocorrência de caras tende a se aproximar da probabilidade real. Ou seja, embora os resultados de experimentos aleatórios sejam imprevisíveis, padrões de probabilidades emergem. A seguir, mostramos os resultados da simulação computacional de um lançamento de moeda justa
Dessa forma, Lorenz descobriu um caso em que um sistema determinístico seria imprevisível no futuro. Ele identificou uma característica de sistemas aleatórios em sistemas determinísticos. Algo inesperado. Desde o século XIX, Laplace defendia a ideia de que, conhecendo-se todas as condições iniciais e as leis da natureza, seria possível prever o passado e o futuro com precisão absoluta — a famosa visão do “demônio de Laplace”. No entanto, Henri Poincaré (1854–1912) demonstrou, em seus estudos sobre o problema dos três corpos, que, mesmo em sistemas determinísticos, pequenas variações nas condições iniciais podem se amplificar rapidamente, tornando a previsão prática inviável. Dessa maneira, a descoberta de Lorenz confirmava, por meio de simulações numéricas, uma intuição já presente em Poincaré. Essa descoberta confirmou que a incerteza predomina na natureza.
“Podemos considerar o estado atual do universo como o efeito de seu passado e a causa de seu futuro. Um intelecto que, em determinado momento, conhecesse todas as forças que põem a natureza em movimento e todas as posições de todos os elementos que a compõem, se esse intelecto também fosse vasto o suficiente para submeter esses dados à análise, abarcaria em uma única fórmula os movimentos dos maiores corpos do universo e os do menor átomo; para tal intelecto, nada seria incerto e o futuro, assim como o passado, estaria presente diante de seus olhos.” — Pierre Simon, Marquês de Laplace, em “Um ensaio filosófico sobre probabilidades”.
As implicações da descoberta de Lorenz são profundas e transformaram nossa compreensão da previsibilidade em sistemas naturais. Embora possamos medir o estado da atmosfera com grande precisão, não é possível prever o tempo meteorológico com exatidão para além de alguns dias, pois pequenas diferenças nas condições iniciais se ampliam rapidamente, tornando o futuro imprevisível. Esse fenômeno mostra que sistemas determinísticos, como o clima, ecossistemas, correntes oceânicas e até mercados financeiros, podem exibir comportamento caótico e ser imprevisíveis no longo prazo.
Implicações filosóficas
Além de revolucionar o estudo de sistemas dinâmicos que evoluem ao longo do tempo, a teoria do caos também possui profundas implicações filosóficas. As decisões cotidianas podem ser interpretadas à luz dessa teoria, especialmente considerando o efeito borboleta, segundo o qual ações aparentemente pequenas podem desencadear consequências vastas e imprevisíveis. Um exemplo marcante é a decisão de Charles Darwin (1809–1882) de aceitar participar da expedição do HMS Beagle (1831–1836). O capitão Robert FitzRoy queria um companheiro educado e com conhecimentos científicos para a viagem, alguém com quem pudesse discutir ciência e filosofia, pois ele mesmo temia se sentir sozinho no mar. Darwin aceitou o convite em 1831, aos 22 anos, sem saber o impacto que a viagem teria em sua vida e na ciência.
Durante a viagem, Darwin coletou milhares de espécimes de plantas, animais e fósseis, além de manter diários detalhados. Ao retornar à Inglaterra em 1836, suas anotações e coleções tornaram-se objeto de intenso estudo, servindo de base para a formulação da teoria da evolução por seleção natural, apresentada em A Origem das Espécies (1859). Embora Alfred Russel Wallace (1823–1913) tenha chegado de forma independente a conclusões semelhantes, ele não dispunha do mesmo volume de evidências, o que provavelmente retardaria a aceitação da ideia. Assim, a simples decisão de Darwin em embarcar na expedição acabou conduzindo ao desenvolvimento de uma das teorias mais influentes da história da ciência.
“Previsões são difíceis, especialmente sobre o futuro.” — Niels Bohr.
Esse efeito borboleta também pode ser observado ao longo da história, como no assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando em Sarajevo. Esse evento relativamente pequeno desencadeou uma sequência complexa de alianças políticas, mobilizações militares e decisões diplomáticas que culminaram na Primeira Guerra Mundial. Ou seja, assim como os sistemas caóticos estão repletos de imprevisibilidade, o mesmo ocorre em nossa vida e na história mundial.
A angústia de Sartre
No cotidiano, a teoria do caos também está presente: sociedades, economias, redes sociais, ecossistemas e até a vida individual envolvem numerosas variáveis que interagem de modo não linear, produzindo imprevisibilidade quanto ao futuro. Cada uma de nossas decisões leva a eventos inesperados em um futuro distante. Uma consequência dessas imprevisibilidade em nossas decisões é a experiência da angústia, tratada por Jean-Paul Sartre (1905–1980) em sua obra O Ser e o Nada (1943). A angústia surge quando o indivíduo se depara com o fato de ser radicalmente livre e, portanto, responsável por suas escolhas e pelas consequências delas. Ou seja, nosso futuro depende de decisões que só nós podemos tomar. Essas decisões não influenciam apenas o nosso futuro, mas também o de outras pessoas. Cada decisão leva a uma série de eventos cujo desfecho é imprevisível. O efeito borboleta pode ser visto como uma metáfora da responsabilidade existencial, pois pequenas ações ou escolhas nossas podem ter consequências enormes e inesperadas no futuro.
“Por causa de um prego perdeu-se a ferradura; por causa da ferradura perdeu-se o cavalo; por causa do cavalo perdeu-se a mensagem; por causa da mensagem perdeu-se a guerra.” — Provérbio chinês.
Escolhas como mudar de emprego, transferir-se para outra cidade ou iniciar um relacionamento podem gerar angústia, pois nos confrontam com a responsabilidade radical sobre nossas próprias vidas e com a impossibilidade de prever completamente as consequências de nossas ações. De forma semelhante, a angústia também surge quando nossas decisões afetam outras pessoas, como familiares ou amigos. Recusar um cargo de chefia, por exemplo, pode resultar na indicação de outra pessoa que venha a demitir colegas de trabalho. Da mesma forma, deixar de participar de decisões comunitárias, como votar, pode contribuir para a eleição de candidatos corruptos. Todas as nossas ações levam a resultados imprevisíveis no longo prazo e isso é um fator de angústia.
“O homem está condenado a ser livre.” — Jean-Paul Sartre.
Por exemplo, Michael Faraday (1791–1867) era um jovem com pouca educação. Começou como aprendiz de encadernador em uma gráfica, mas era muito curioso e estudioso. Em 1812, Faraday assistiu a uma série de palestras do famoso cientista Humphry Davy em Londres e lhe enviou notas detalhadas de sua apresentação, demonstrando grande interesse e habilidade. Impressionado com sua dedicação e talento, Davy o contratou como assistente de laboratório em 1813, dando início à sua carreira científica. Essa carreira o levaria a fazer descobertas fundamentais em eletricidade e magnetismo. Se Davy não o tivesse contratado, Faraday não teria feito descobertas que revolucionaram a eletricidade e o magnetismo, levando ao desenvolvimento de motores modernos e à geração de eletricidade. Ou seja, talvez ainda estaríamos anos atrasados em relação aos avanços atuais, e você não estaria lendo este texto em um computador. A decisão de Davy de contratá-lo desencadeou uma série de eventos imprevisíveis que revolucionaram a física e a engenharia.
Dessa forma, como somos constantemente confrontados com decisões ao longo da vida, a angústia que Sartre descreve parece inevitável. Seria, porém, possível evitá-la? Há, de fato, uma solução aparentemente simples: não nos importarmos com nossas escolhas — “lavar as mãos” em relação às consequências de nossos atos. Ou seja, se algo negativo decorrer de nossas decisões, simplesmente não nos preocuparíamos. Contudo, essa postura acarretaria implicações possivelmente ainda mais graves. Vejamos um exemplo.
A banalidade do mal
Durante a Segunda Guerra Mundial (1939–1945), Adolf Eichmann era um oficial nazista alemão e uma das principais figuras na organização do Holocausto. Ele trabalhava no Escritório Central de Emigração Judaica e na RSHA (Reichssicherheitshauptamt), coordenando a deportação de milhões de judeus para campos de concentração e extermínio. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, Eichmann fugiu para a Argentina, mas foi capturado em 1960 por agentes israelenses e levado a julgamento em Jerusalém no ano seguinte.
Em 1963, a filósofa, teórica política e escritora Hannah Arendt (1906–1975), nascida na Alemanha em uma família judia, acompanhou o julgamento esperando encontrar um monstro sádico ou um psicopata no banco dos réus — algum vilão como os que vemos nos filmes de Hollywood, como Darth Vader ou Thanos. No entanto, ela notou que ele parecia completamente comum, um típico burocrata que cumpria ordens sem refletir sobre a gravidade de seus atos. Ele simplesmente fazia o que era pedido e afirmou agir dentro da lei, sem questionar as consequências. Ele chegou a dizer que seguia a ética kantiana, ou seja, uma ética baseada no dever, e não nas consequências das ações. Imagine, por exemplo, que um assassino chega à sua porta e pergunta onde está a vítima que ele pretende matar. A questão é: seria moralmente correto mentir para salvar a vida da vítima? De acordo com o imperativo categórico de Kant, mentir é sempre errado. Logo, deveríamos dizer a verdade, sem se preocupar com as consequências.
Assim, Arendt observou que o “mal” não surge de intenções explícitas de destruir ou de ódio, mas da falta de pensamento crítico e da obediência cega a regras. Para praticar o mal, basta deixar de praticar o bem. Ou seja, basta não pensarmos nas consequências de nossos atos para que o mal possa surgir. Portanto, embora essa atitude de não ponderar o efeito de nossos atos possa nos livrar da angústia, ela pode levar a consequências desastrosas. A partir dessas observações, Arendt formulou o conceito de “banalidade do mal”.
“O mais chocante do julgamento de Eichmann não foi a monstruosidade de suas ações, mas a sua mediocridade e a aparente incapacidade de pensar sobre o que estava fazendo.” — Hannah Arendt.
A banalidade do mal pode se manifestar em diversos contextos cotidianos. Um professor, por exemplo, pode apresentar o conteúdo de um curso sem se preocupar se os alunos estão de fato aprendendo, tratando a educação como mera burocracia e, assim, perpetuando desigualdades ao não motivá-los a aprender e prepará-los adequadamente para a vida em sociedade. Da mesma forma, um juiz pode aplicar a lei de maneira estritamente mecânica, mesmo quando sua interpretação literal resulta em injustiça, como no caso de punir severamente alguém que comete um crime para se alimentar, ignorando sua vulnerabilidade social. Um advogado pode defender clientes ou empresas que causam danos, como poluição ou exploração de trabalhadores, justificando sua conduta como mero cumprimento do dever profissional. Um químico pode desenvolver alimentos repletos de aditivos ou açúcar, prejudiciais à saúde, amparando-se na justificativa de que eles tornam o alimento mais barato. Um jornalista pode publicar informações falsas ou tendenciosas para agradar ao veículo ou a patrocinadores, sem refletir sobre o impacto social de sua conduta. Em todos esses casos, não se trata de crimes ou atos de crueldade intencional, mas de práticas que, pela ausência de reflexão ética, contribuem para a produção e a perpetuação do mal.
Portanto, com base no que discutimos até aqui, parece que não temos escapatória: ou experimentamos a angústia diante de cada decisão que tomamos, ou vivemos de forma automática, sem reflexão, correndo o risco de incorrer na banalidade do mal. Haveria outra alternativa? Na verdade, sim. Para isso, podemos recorrer à filosofia greco-romana.
A solução greco-romana
Por volta de 300 a.C., Zenão de Cítio (c. 334–262 a.C.), um mercador fenício, estabeleceu-se em Atenas após um naufrágio e começou a estudar filosofia. Ele teve contato com cínicos, megáricos e acadêmicos, e a partir dessa mistura construiu sua própria escola. Seus ensinamentos eram ministrados na Stoa Poikílē (“Pórtico Pintado”), de onde veio o nome “estoicos”. Zenão lançou as bases do estoicismo clássico, que seriam aprofundadas por Crisipo, Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio, cada um adaptando a doutrina ao seu tempo. Basicamente, o estoicismo não busca apenas compreender o mundo, mas também oferecer ferramentas para se viver bem, com sabedoria e virtude, independentemente das circunstâncias externas.
“O que fazemos agora ecoa pela eternidade”. — Marco Aurélio.
Os estóicos defendem que não controlamos o curso do mundo, apenas nossas ações e atitudes diante dele. A chave está em focar no que depende de nós (virtude, escolhas conscientes, retidão moral) e aceitar com serenidade o que não depende. Isso reduz a angústia, pois não tentamos controlar o incontrolável, mas também não caímos na indiferença. Temos a obrigação de agir com virtude sempre que podemos. Em outras palavras, os estóicos diriam: não temos como controlar as consequências últimas de nossos atos, mas temos o dever de agir de forma justa e correta em cada decisão presente.
Desse modo, não devemos nos responsabilizar por ações cujas consequências futuras são totalmente imprevisíveis. Por exemplo, os avaliadores da Akademie der Bildenden Künste Wien não podem ser culpados por terem rejeitado, em 1907 e 1908, os trabalhos de um jovem pintor austríaco, considerando fracas suas representações de figuras humanas, ainda que reconhecessem algum mérito em suas paisagens. Essa reprovação levou-o a abandonar a arte e a ingressar na política, tornando-se posteriormente o líder do Partido Nazista e responsável por algumas das maiores tragédias do século XX, que resultaram na morte de milhões de pessoas.
Por outro lado, há decisões cujas consequências são mais previsíveis, e por elas somos responsáveis. Manter uma dieta saudável, por exemplo, tende a reduzir os riscos de doenças, assim como oferecer apoio a alguém com depressão pode favorecer sua recuperação. Da mesma forma, quando os professores se dedicam a ensinar e a motivar seus alunos, costumam formar profissionais mais capacitados e contribuir para o desenvolvimento da sociedade. Foi o que ocorreu com Michael Maestlin, que, ao ensinar o modelo de Copérnico na Universidade de Tübingen — uma atitude arriscada para a época — , acabou influenciando decisivamente seu aluno, Johannes Kepler. Kepler, por sua vez, formularia as leis do movimento planetário e impulsionaria a revolução científica no início da Idade Moderna. Portanto, é essencial refletir sobre nossas ações e buscar aquelas que gerem desdobramentos positivos, mesmo que não possamos prever todas as suas consequências a longo prazo. Como afirmou John Stuart Mill em seu livro Sobre a Liberdade (1859), “cada indivíduo deve ter liberdade para agir como quiser, desde que não prejudique os outros”.
“Cada indivíduo deve ter liberdade para agir como quiser, desde que não prejudique os outros”. — John Stuart Mill (1806–1873), em seu livro “Sobre a Liberdade” (1859).
Dessa forma, devemos agir para enfrentar as angústias reveladas pela imprevisibilidade do mundo, como sugere a teoria do caos, sem, entretanto, cair na indiferença que leva à banalização do mal. É nossa responsabilidade tomar decisões conscientes, éticas e bem refletidas, avaliando criticamente as consequências de nossos atos.
Sugestões de leitura
- Caos. A Criação De Uma Nova Ciência, James Gleick.
- Ser e o nada: Ensaio de ontologia fenomenológica, Jean-Paul Sartre.
- Eichmann em Jerusalém, Hannah Arendt.
