O grande mistério da matemática
Por que a matemática é a linguagem do universo?
Quando estudamos matemática na escola, muitas vezes não percebemos a sua relevância para explicar o mundo e as questões filosóficas que resultam de sua aplicabilidade. Durante esses anos de ensino, abordamos a matemática como se estivéssemos montando um conjunto de ferramentas, porém, muitas vezes não compreendemos plenamente a importância de cada uma delas e para que propósito elas servem. É como se conhecêssemos o que é uma chave de fenda, uma serra e um martelo, mas não temos ideia de como usá-los para construir uma caixa de madeira. Não sabemos por que estamos estudando matrizes, equações, funções ou polinômios. Tudo parece muito distante da realidade.
No entanto, só temos uma ideia do uso da matemática mais tarde, quando a usamos para descrever as leis da física. Observamos que uma equação algébrica bastante simples por prever a posição de um objeto em queda livre ou que a pressão de um gás pode ser calculada a partir da sua temperatura e volume. No entanto, quando aprendemos esses conceitos, dificilmente um professor nos perguntou: “Por que essas leis funcionam?” Eis o grande mistério. Por que a matemática é tão eficiente em explicar o mundo? Essa pergunta, embora pareça bastante abstrata, ela nos permite filosofar sobre a nossa própria realidade. Se a matemática funciona tão bem, foi o universo construído pela matemática? Se foi, quem construiu? Se não foi, por que consegue descrever o mundo de maneira tão precisa? Será que vivemos em uma simulação de computador? Existem universos paralelos? Nesse texto, vamos discutir um pouco sobre esse grande mistério. Por que a matemática funciona?
“A natureza está escrita em linguagem matemática.” — Galileu Galilei
Em 1960, Eugene Wigner (1902–1995), ganhador do Prêmio Nobel em 1962 devido às suas contribuições para a teoria do núcleo atômico e partículas elementares, publicou o artigo “The Unreasonable Effectiveness of Mathematics in the Natural Sciences”, onde escreveu: “O milagre da adequação da linguagem matemática à formulação das leis da física é uma dádiva maravilhosa que não entendemos nem merecemos.” Wigner apontou um grande mistério que assombra a ciência desde os tempos remotos: “A imensa utilidade da matemática nas ciências naturais beira o misterioso e não há uma explicação racional para isso.” A matemática foi desenvolvida a partir da necessidade de resolver problemas práticos. Aprendemos a calcular áreas, perímetros e frações. Como é possível explicar o universo com essa ferramenta? Para tentar explicar essa efetividade da matemática, vamos à sua origem.
“A imensa utilidade da matemática nas ciências naturais beira o misterioso e não há uma explicação racional para isso.” — Eugene Wigner.
Tudo começou com pastores, talvez no Oriente Médio, Índia ou China, há milhares de anos, interessados em somar ovelhas sem saber contar. Eles associavam um objeto, como uma pedra ou graveto, a cada ovelha que saia do cercado. Por exemplo, um pastor poderia ter um grupo de cinco pedras para representar cinco ovelhas. Quando saiam para pastorar, criava-se um monte de pedras cuja quantidade era igual à quantidade de ovelhas. Quando voltava com o rebanho, verificava-se se as quantidades eram equivalentes, de modo a determinar se alguma ovelha havia se perdido. Ou seja, para resolver um problema puramente prático. Mal sabiam esses pastores que eles estavam começando a ver o infinito.
Após mais alguns milhares de anos, atividades matemáticas começaram a ser registradas. Os primeiros indícios de anotações matemáticas remontam a cerca de 30.000 a.C., com registros de marcas em ossos e pedras, sugerindo práticas de contagem e noção de quantidades. Por volta de 3.000 a.C., na região do Crescente Fértil, onde emergiram as civilizações mesopotâmicas como Assíria, Babilônia e Suméria, assim como no Egito, surgiu uma necessidade de quantificar a produção, realizar coletas de impostos e distribuir terras. Tudo muito prático. Nessas civilizações, foram desenvolvidos sistemas de numeração, técnicas de medição de terras, cálculos para a construção de pirâmides e conhecimentos matemáticos aplicados ao comércio e à engenharia. Ou seja, inicialmente, a matemática foi, basicamente, um produto da necessidade de gerenciar o que era produzido nas primeiras civilizações, bem como usada em obras de engenharia. A matemática era apenas uma ferramenta para ajudar a vida humana, como uma enxada ou um moedor de trigo. Nada mais do que isso.
No entanto, entre os séculos VI a.C. e IV a.C., essa abordagem prática começou a seguir um caminho diferente na Grécia e Turquia. Lá, os primeiros matemáticos estavam interessados na formulação da matemática de uma maneira mais teórica, baseada na geometria. Ou seja, a matemática começou a ser usada não apenas como uma ferramenta prática, mas uma linguagem mental para explicar o mundo. Talvez o primeiro matemático a observar a universalidade da matemática foi Pitágoras.
“O princípio de tudo é o número.” — Pitágoras.
Pitágoras nasceu na ilha grega de Samos, na Costa Jônica, em 570 a.C. Não sabemos ao certo se esse matemático realmente existiu nessa época, pois os registros só foram feitos séculos depois da sua morte. Esses registros históricos afirmam que Pitágoras criou uma espécie de seita que cultuava a matemática. Os membros dessa seita se chamavam mathematikoi. Pitágoras sugeriu que os números e a matemática seriam a origem de todo o Universo. Ele dizia que “O princípio de tudo é o número” e “todas as coisas são números”. Ou seja, Pitágoras ficou tão fascinado com essa ideia de usar a matemática para explicar o mundo que até criou um tipo de religião. O próprio Aristóteles escreveu que “os pitagóricos (…) pensavam que as coisas são números (…) e que todo o cosmo é uma régua e um número.” Para Pitágoras, o universo não era apenas descrito pela matemática, mas era a própria matemática.
Com o desenvolvimento da cultura grega, diversos teoremas ajudaram a formular as primeiras ideias matemáticas. Tales de Mileto, Euclides de Alexandria, Arquimedes de Siracusa, Apolônio de Perga e Erastótenes são apenas alguns nomes que contribuíram de forma marcante para o nascimento da matemática. Essa matemática era admirada e idolatrada, onde os conceitos e formas matemáticas estão em um mundo ideal, platônico e perfeito. Para Platão, que sugeriu a ideia que vemos no filme Matrix, no seu mito da caverna, os conceitos matemáticos vivem em um mundo ideal, sendo nosso universo real apenas uma aproximação imperfeita desse mundo. Ou seja, para ele, vivemos em um universo que é uma aproximação grosseira de um mundo puro e ideal. Assim, um triângulo que desenhamos em uma folha de papel é apenas uma representação de um triângulo ideal, o qual não temos acesso. Segundo essa ideia, vivemos em uma caverna, onde vemos apenas a sombras que são projetadas desse mundo ideal. Desse modo, somos exploradores que descobrem a matemática, que já existe nesse mundo divino. Assim como a América já existia antes de ser descoberta, os teoremas já existem nesse mundo ideal. Matemáticos são exploradores desse universo das ideias. Ou seja, para Platão, a matemática está sendo descoberta. Não foi inventada.
Assim sendo, temos agora um mistério. No Crescente Fértil, a matemática foi inventada para resolver problemas práticos. Na Grécia Antiga, era vista como uma descoberta, um conceito que vive em um mundo ideal. Portanto, a matemática foi inventada ou descoberta? Se foi inventada por nós, humanos que evoluíram nas planícies da Etiópia, por que funciona tão bem, permitindo-nos explicar desde o movimento das galáxias até as interações entre átomos e moléculas? Se foi descoberta, quem inventou? Como regras e padrões tão precisos podem emergir do caos e da aleatoriedade que foi o universo no início dos tempos? De onde vieram as leis da física? Essas são perguntas que não temos resposta.
“A matemática é a única linguagem que temos em comum com a natureza.” — Stephen Hawking
Embora Pitágoras enxergasse o mundo como sendo puramente matemático, ele não mostrou isso na prática. Os gregos não estavam interessados em experimentação. Aristóteles afirmou que objetos mais pesados caem mais rapidamente, porém, ele não se preocupou em verificar essa afirmação empiricamente. Para ele, bastava observar que uma pena cai mais lentamente do que uma pedra. No entanto, ele não investigou se, ao amarrarmos uma pedra a uma pena, a pedra cairia mais lentamente. Isso foi pensando mais de mil anos depois. Galileo Galilei foi o primeiro cientista ocidental a mostrar que a matemática pode ser usada para explicar o mundo físico.
Galileo nasceu em Pisa, Itália, em 1564. Seu pai, que era amigo de Leonardo da Vinci, queria que Galileo estudasse medicina na Universidade de Pisa. Galileo seguiu as orientações do pai, mas, após alguns anos, desistiu do curso por conta do seu interesse em matemática. Ele dizia que “a natureza foi escrita na linguagem da matemática”. Ou seja, é como se o mundo em que vivemos fosse construído de alguma forma usando matemática. Por exemplo, em jogos de computadores, como Minecraft ou Roblox, somos um personagem que explora diferentes mundos, todos programados seguindo certas leis. No Minecraft, quando uma árvore é cortada, ela não cai como no nosso mundo real. A copa dela fica fixa, como se flutuasse no ar, mesmo sem um tronco conectado-a ao solo. Essa é uma lei da natureza naquele mundo, que foi inicialmente programado por Markus Persson (conhecido como Notch), um programador sueco que criou o jogo lançado em 2009. Para um personagem do Minecraft, cortar uma árvore e não vê-la cair é uma realidade tão certa quanto a nossa, onde a gravidade influencia tudo a nossa volta. Portanto, a nossa realidade está intimamente ligada às leis da física, que são descritas pela matemática. Uma matemática que rege as leis do Universo.
Usando uma abordagem experimental, Galileo formulou as primeiras leis do movimento. Usando a Matemática, ele construiu a cinemática, que é a área da Física que estuda o movimento, em termos de equações. Essas equações são chamadas “modelos matemáticos”, que são usados para explicar o mundo. Assim, ao invés de dizer: a posição de um corpo em queda livre em um intervalo de tempo t é dada pela posição inicial, mais a velocidade inicial multiplicada pelo tempo, mais a metade da aceleração da gravidade multiplicada pelo tempo elevado ao quadrado; pode-se simplesmente escrever de forma compacta: S(t) = S(0) + V(0)t + gt²/2. Portanto, uma equação do segundo grau, que resolvemos usando a fórmula de Bhaskara, que aprendemos no ensino fundamental. Uma equação extremamente simples, mas que descreve uma grande variedade de movimentos. É essa equação que usamos para calcular a posição de um míssil lançado a partir de um navio ou mesmo o alvo a ser acertado no jogo Angry Birds. Algo extremamente simples, que funciona aqui ou em uma lua na galaxia de Andrômeda. Novamente, nas palavras de Eugene Wigner “é uma dádiva maravilhosa que não entendemos nem merecemos.”
Mas essa efetividade da matemática não para por aí. Isaac Newton e Johannes Kepler descobriram as leis que regem os movimentos dos planetas ao redor do Sol. Newton propôs as leis que regem a Mecânica, explicando os movimentos dos corpos sob ação da gravidade. Para fazer essa explicação, Newton inventou (ou descobriu) uma nova área da Matemática chamada cálculo diferencial e integral, que se dedica ao estudo de taxas de variação de grandezas (como a inclinação de uma reta) e a acumulação de quantidades. Essa mesma ferramenta foi descoberta, de forma independente, pelo filósofo e matemático Gottfried Wilhelm Leibniz. Newton teve desavenças com Leibniz por conta da invenção do cálculo, alegando que Leibniz havia copiado suas ideias, embora a abordagem de Leibniz seja bem diferente e mais simples do que a de Newton. Essa descoberta simultânea de conceitos matemáticos é algo que nos intriga, ocorrendo muitas vezes ao longo da história. Como matemáticos trabalhando de forma independente descobrem (ou inventam) as mesmas ferramentas? Além disso, muitas vezes, a descrição da Natureza não é única. As leis de Newton foram posteriormente reformuladas usando raciocínio puramente matemático por Pierre-Simon, Marquês de Laplace, em sua monumental obra-prima Mecanique Céleste. Laplace traduziu o estudo geométrico da Mecânica clássica usada por Isaac Newton para um estudo baseado em cálculo, descrevendo as leis da Mecânica de uma forma mais simples e elegante. Laplace não precisou de desenhos ou geometria para descrever o mundo. Ele formulou equações baseando-se no conceito de energia (que foi proposto por Leibniz) e assim reformulou toda a Mecânica, criando a Mecânica Analítica.
Laplace, acreditando na efetividade da matemática, sugeriu a existência de um demônio que poderia predizer todo o passado e futuro do universo, baseando-se nas leis da Mecânica. Ele afirmou: “Podemos considerar o presente estado do universo como resultado de seu passado e a causa do seu futuro. Se um intelecto em certo momento tiver conhecimento de todas as forças que colocam a natureza em movimento, e a posição de todos os itens dos quais a natureza é composta, e se esse intelecto for grandioso o bastante para submeter tais dados à análise, ele incluiria numa única fórmula os movimentos dos maiores corpos do universo e também os dos átomos mais diminutos; para tal intelecto nada seria incerto e o futuro, assim como o passado, estaria ao alcance de seus olhos.” Ou seja, usando a matemática, tudo é previsível, tanto o passado quando o futuro. Basta termos um computador potente e dados. No entanto, a natureza não é tão simples e a Mecânica Quântica, em conjunto com a Teoria do Caos, mostraram que o determinismo a longo prazo é impossível. Veremos isso em outro texto, no futuro. Por hora, vamos continuar nesse grande mistério.
Um ponto importante sobre as descobertas de Kepler, Galileo e Newton é que a Física não tem como base a Matemática, mas a experimentação. Ou seja, a Física usa a Matemática para explicar o mundo, mas as leis da Física são formuladas a partir de experimentos. Nas palavras do físico Richard Feynman “Não importa o quão bonita seja sua teoria, não importa o quão inteligente você seja. Se não concordar com a experiência, ela está errada.” Portanto, a Física não está interessada em elaborar leis que sejam belas, mas que sejam úteis. No entanto, mesmo assim, as leis que emergem são bastante simples e isso nos impressiona. Como o movimento de galáxias e planetas pode ser descrito por uma equação que podemos escrever em uma folha de papel? Ou ainda, no eletromagnetismo, como toda a teoria eletromagnética pode ser descrita por quatro equações elaboradas por James Clerk Maxwell? É um grande mistério…
Como as leis da Física são baseadas em experimentos, as leis de Newton foram atualizadas por Albert Einstein a partir de 1905, com a sua Teoria da Relatividade. Einstein, usando uma formulação matemática, mostrou que o tempo e o espaço são grandezas relativas, não absolutas, como Newton havia proposto. Einstein usou uma ferramenta desenvolvida por um matemático, Hendrik Lorentz, para explicar como as medidas de tempo e espaço se relacionam quando examinadas por diferentes observadores em movimento relativo um em relação ao outro. Segundo a teoria de Einstein, a gravidade é fruto da curvatura gerada no espaço em virtude da presença de um corpo muito massivo. Portanto, não existe uma “força gravitacional”, como proposto por Newton. O mais interessante na Teoria da Relatividade é que ela foi elaborada de maneira mental, sendo comprovada apenas anos depois, na observação de um eclipse em maio de 1919, em Sobral no Ceará. Pesquisadores verificaram que a matéria e a energia distorcem a malha do espaço-tempo, podendo desviar a trajetória da luz que viaja por ele. Ou seja, usando conceitos matemáticos desenvolvidos por Lorentz, que não estava interessado em descrever o universo, Einstein propôs uma teoria, não baseada em observações, mas em matemática, que só foi comprovada anos mais tarde.
Embora Einstein tenha usado a Matemática para propor suas teorias, ele não se sentia confortável em aceitar certos resultados, com no caso da Mecânica Quântica. Mesmo tendo ajudado no seu desenvolvimento, quando explicou o efeito fotoelétrico, que ocorre através da transferência de energia de fótons para elétrons, ele nunca aceitou a interpretação probabilística da Mecânica Quântica. Einstein afirmava que Deus “não joga dados com o universo”, achando um absurdo que o mundo seja probabilístico, e não determinístico, como visto anteriormente na Mecânica e Eletromagnetismo. Na Mecânica Clássica, o mundo é um lugar previsível. Se você souber a posição e a velocidade de uma partícula, você pode prever com certeza onde ela estará no futuro, como sugeriu Laplace. Por outro lado, no mundo quântico, a natureza é um lugar probabilístico. Se você souber a posição e a velocidade de uma partícula, você pode apenas prever a probabilidade de ela estar em um determinado lugar no futuro. Não sabemos qual será o próximo valor no lançamento de um dado, mas podemos calcular a probabilidade de saída de cada uma das suas faces. Essa indeterminação assombrou Einstein durante toda a sua vida, levando-o a sugerir diversas interpretações que foram refutadas. O próprio Erwin Schrödinger, que introduziu a equação que descreve o comportamento de sistemas físicos quânticos, não aceitava a interpretação probabilística.
Schrödinger propôs um experimento mental chamado “gato de Schrödinger” para ilustrar suas preocupações com a interpretação probabilística da mecânica quântica. No experimento mental, um gato é colocado em uma caixa fechada com um frasco de veneno. O frasco de veneno é conectado a um dispositivo que pode ser acionado por um átomo radioativo. Se o átomo radioativo se desintegrar, o frasco de veneno será quebrado e o gato morrerá. De acordo com a interpretação probabilística da mecânica quântica, o átomo radioativo está em um estado de superposição de estados. Em um estado, o átomo radioativo não se desintegra e o gato vive. Em outro estado, o átomo radioativo se desintegra e o gato morre. Até o momento em que a caixa for aberta, não podemos saber com certeza se o gato está vivo ou morto. O gato está em um estado de superposição de estados, vivo e morto ao mesmo tempo. Schrödinger argumentou que isso é absurdo. Ele não acreditava que fosse possível que um gato estivesse vivo e morto ao mesmo tempo. Ele acreditava que a mecânica quântica deve estar incompleta e que, em última análise, deve haver uma teoria mais fundamental que explique a natureza probabilística da mecânica quântica. Embora Einstein e Schrödinger fossem contrários à interpretação probabilística, ela é uma teoria altamente precisa e condiz com os dados de experimentos. Ou seja, embora a função de onda seja um objeto matemático, ela é a melhor interpretação que temos para o mundo real. É mais uma mostra da incrível efetividade da Matemática. Mesmo que não consigamos imaginar alguns fenômenos que ocorrem no mundo quântico, a Matemática mostra que os resultados estão corretos, pois concordam com os experimentos de maneira extremamente precisa.
Além dessas ideias matemáticas que surgem de experimentos físicos, há casos em que a Física usa ferramentas que eram puramente Matemáticas. Ou seja, não é incomum que matemáticos desenvolvam teorias totalmente distantes da realidade, mas que depois se mostram fundamentais para explicar fenômenos na natureza. Há muitos exemplos, sendo um dos mais notáveis o que usa o conceito de simetria. Simetria é a propriedade de um objeto que não muda quando ele é transformado de uma certa maneira. Nosso cérebro nutre especial apreciação estética por objetos que se mostram simétricos. Na arte, o conceito de simetria é muito importante do ponto de vista estético. No “Retrato da Mona Lisa”, de Leonardo da Vinci, a pintura é simétrica em relação ao eixo vertical, com a cabeça e o torso da Mona Lisa divididos em duas metades iguais. Essa simetria ajuda a criar um senso de equilíbrio e harmonia na pintura. Na Matemática, a simetria é estudada na geometria, na álgebra e na teoria dos grupos. Por exemplo, um quadrado é simétrico em relação a quatro eixos de rotação. Isso significa que, se você girar o quadrado em 90 graus, 180 graus ou 270 graus, ele ainda parecerá o mesmo. Uma esfera é simétrica em relação à rotação em torno de qualquer eixo.
Quem revolucionou a ideia de simetria na Física foi a matemática alemã Emmy Noether, que estava interessada no estudo de Álgebra, longe de aplicações reais. Em 1918, Noether propôs um dos teoremas mais importantes da Física moderna, onde afirma que há uma conexão entre a simetria e as leis de conservação na Física. Se um sistema físico não muda sob uma transformação, então uma quantidade física relacionada a essa transformação é conservada. Por exemplo, a lei da conservação da energia afirma que a energia total do universo é sempre conservada. Essa lei pode ser derivada do Teorema de Noether, que nos diz que as leis da Física são invariantes sob transformações temporais. Ou seja, as leis da Física não mudam com o tempo. Se você realizar um experimento hoje e repetir o mesmo experimento daqui a um ano, obterá os mesmos resultados. O mesmo vale para outras quantidades, como o momento linear, angular ou carga elétrica. Essa ideia da simetria, que é puramente matemática, permite-nos encontrar novas leis da Física ou a estender leis existentes. Por exemplo, a simetria de gauge foi fundamental para o desenvolvimento da teoria quântica de campos, bem como na descoberta do bóson de Higgs, que é uma partícula responsável pela massa das partículas fundamentais. Essa partícula foi predita usando-se apenas argumentos matemáticos, em 1964. Assim, o conceito de simetria tem ajudado a revolucionar a Física, que é focada em dados experimentais. O conceito de simetria na Física se relaciona com ordem e estrutura, como sugeriu Werner Heisenberg, tratando-se de uma propriedade fundamental da natureza.
Essa efetividade da Matemática se tornou um dogma na Física. Muitos pesquisadores acreditam que a matemática é uma parte fundamental da natureza, argumentando que a matemática é inerente ao universo. Conforme afirmou Paul Dirac em 1963, “é mais importante ter beleza nas suas equações do que tê-las adequadas à experiência”. As leis da Física seriam matemáticas por natureza, e que a Matemática é necessária para entender a natureza. O sucesso dessa ideia é um grande mistério. A Matemática foi utilizada para prever a existência do planeta Netuno, ondas de rádio, antimatéria, neutrinos, buracos negros, ondas gravitacionais e o bóson de Higgs, para dar apenas alguns exemplos. No entanto, há aqueles que ainda não concordam com essa ideia, pois há fenômenos naturais que ainda não são completamente compreendidos pela Matemática, como a natureza da gravidade ou mesmo a turbulência em fluídos. Aqueles que acreditam que a Matemática foi inventada, argumentam que a mente humana continua a inventar novos conceitos matemáticos até hoje. Nesse caso, talvez haja um limite em que não conseguiremos explicar nosso mundo através da matemática. Um exemplo seria o modelo padrão, cuja equação é considerada a mais “feia” já produzida na Física. Talvez essa beleza que encontramos até agora esteja no limite, onde vamos ter que decidir entre uma teoria efetiva ou uma equação “bela”. Esse caminho que a Física deverá trilhar vai nos ajudar a termos mais ideia sobre esse grande mistério da Matemática: inventada ou descoberta?
“God is a pure mathematician!” Sir James Jeans
Além da Física, é importante comentar que a universalidade da matemática ocorre em Economia, onde temos, por exemplo, a equação de Black-Sholes; em Complexidade, onde temos a lei de potência; em Sociologia, onde temos a equação de Pareto; em Biologia, onde os modelos ecológicos são altamente precisos para descrever o comportamento de ecossistemas. Em uma postagem anterior, eu discuti sobre as leis de potência.
Em resumo, embora não tenhamos chegado a uma resposta sobre esse grande mistério, é importante conhecê-lo. Na verdade, cada um pode tentar respondê-lo ao seu modo, seguindo uma ou outra linha de raciocínio. Isso nos ajuda a ver a beleza da Matemática e dá certo sentido à nossa existência, nos colocando como agentes em um mundo regido por padrões não triviais. Somos criadores de uma linguagem que explica o cosmo e ao mesmo tempo, criaturas que conseguem ler essa linguagem que foi usada para criar a natureza. Quem imaginava que os cálculos que aprendemos na séries fundamentais eram, na verdade, a linguagem usada para descrever o universo? Há algumas décadas, era impossível suspeitar que teríamos computadores tão velozes, onde podemos criar mundos virtuais, como nos jogos Minecraft ou No Man’s Sky. Tudo isso foi possível, graças à Matemática. Se a Matemática descreve o nosso universo, isso nos leva à hipótese que podemos desenvolver universos simulados, dentro do computador. Isso tem sido feito com os jogos. Pensando filosoficamente, seria a nossa realidade uma simulação computacional, onde os criadores desse universo usaram conceitos matemáticos, assim como nós? Essa ideia é bastante interessante, mas fica para um outro texto.
Até a próxima!
Caso tenham curiosidade em conhecer minhas pesquisas, visitem esse link: https://sites.icmc.usp.br/francisco.
Para saber mais:
- Livro: Deus é matemático? Mário Lívio.
- Artigo: The Unreasonable Effectiveness of Mathematics in the Natural Sciences, Eugene Wigner.
- Vídeo: The Great Math Mystery, Nova.