A era da complexidade

Como olhar para os grandes problemas do mundo através da lente da complexidade.

Francisco Rodrigues
10 min readNov 30, 2024

No dia 23 de janeiro de 2000, durante uma entrevista ao San Jose Mercury News, o físico Stephen Hawking, então professor da Universidade de Cambridge, foi questionado sobre qual seria a principal área de pesquisa no século XXI. A física havia reinado no século XIX, com a termodinâmica e o eletromagnetismo, que foram os motores da Revolução Industrial. No século XX, a física continuo seu sucesso com a mecânica quântica, mas a eletrônica proporcionou a revolução do computadores e a genética desvendou o genoma humano. Hoje, essas áreas continuam a se desenvolver, mas haveria algo novo? Hawking então respondeu: “Acredito que o próximo século será o século da complexidade”. Ele vislumbrou o século XXI como o século dos sistemas complexos. Mas o que seriam esses sistemas?

“A complexidade é uma característica fundamental do universo.” — Stephen Hawking, físico teórico britânico.

Antes de respondermos, vamos começar com uma pergunta: o que a economia, a Internet, o cérebro, as cadeias alimentares e as cidades têm em comum? À primeira vista, talvez nada que possamos imaginar, mas esses são exemplos de sistemas complexos. Todos eles são formados por partes interconectadas que, em conjunto, geram fenômenos emergentes. Por exemplo, em nosso cérebro, neurônios se conectam por sinapses e trocam neurotransmissores, resultando na emergência de nossa memória e funções cognitivas. Da mesma forma, vírus se espalham entre pessoas, desencadeando pandemias, informações circulam nas redes sociais, muitas vezes gerando desinformação, e países trocam mercadorias e serviços, sustentando a economia global. A emergência ocorre em uma variedade de sistemas, desde formigueiros até organismos celulares. Em uma colmeia, nenhuma abelha sozinha “planeja” ou entende o funcionamento completo do ninho, mas, juntas, elas constroem estruturas complexas, para armazenar alimento e cuidar das larvas de forma eficiente. O “funcionamento da colmeia” é um fenômeno emergente, resultado da cooperação entre as abelhas.

Essa complexidade da vida e de nossa sociedade surge desse fenômeno de emergência, onde dizemos que o todo é maior do que a soma das partes (veja nossa publicação anterior sobre o tema). Ou seja, não podemos entender o cérebro olhando para um simples neurônio e nem a sociedade analisando um simples indivíduo. Precisamos analisar as conexões de todo o sistema. Precisamos da complexidade.

Exemplos de sistemas complexos incluem redes sociais, formadas por usuários interconectados; interações entre proteínas; redes de aeroportos, conectadas por rotas aéreas; a Internet, composta por roteadores que trocam informações; e cadeias alimentares, onde espécies se relacionam por meio de interações tróficas. Esses sistemas estão presentes em diversos aspectos da nossa vida.

Agora que entendemos o que é um sistema complexo, por que Stephen Hawking sugeriu que o século XXI seria o século da complexidade? Basicamente, porque a teoria da complexidade fornece ferramentas essenciais para enfrentar os grandes desafios globais. Problemas como pobreza, doenças, epidemias, aquecimento global, desinformação, saúde mental, crises financeiras, extinção de espécies, guerras e corrupção demandam uma abordagem que considere as interações entre os diversos elementos desses sistemas.

Por exemplo, para compreender as mudanças climáticas, é necessário analisar como diferentes regiões do planeta estão conectadas e como variáveis climáticas se influenciam mutuamente. Alterações na intensidade do fenômeno El Niño impactam não apenas o clima na Amazônia, mas em todo o globo, devido à rede de conexões que interliga diferentes regiões do planeta. Da mesma forma, em 2019, vimos como um único caso de infecção por coronavírus na China desencadeou uma pandemia global, afetando bilhões de pessoas. Já a falência do banco Lehman Brothers, um dos mais tradicionais dos Estados Unidos, provocou uma crise econômica em escala mundial em 2008. Ou seja, as conexões entre os elementos do sistema foram fundamentais para que crises ou epidemias se propagassem.

Os grandes desafios globais, como a fome, as mudanças climáticas, as doenças genéticas, a crise da saúde mental, as epidemias, as crises econômicas, a corrupção e a desinformação, são exemplos de desafios que podem ser abordados por meio da teoria dos sistemas complexos.

Embora a complexidade esteja a nossa volta desde os tempos imemoriais, porque somente agora ela se tornou tão importante? A resposta é simples, precisávamos de dois ingredientes básicos para estudá-la: dados e computadores. No final da década de 90, computadores ficaram mais rápidos, principalmente os de uso pessoal, como as versões da Intel x86. Além disso, dados começaram a ficar disponíveis com revolução dos sites de busca, como a Google, que foi criada em1998. Com dados e computadores, finalmente a complexidade poderia ser estudada de forma quantitativa. Era a hora da complexidade.

Para estudar a complexidade, precisamos de uma abordagem filosófica diferente da da ciência tradicional, chamada holismo. O holismo defende que “o todo é maior do que a soma das suas partes”. Para compreender os sistemas complexos, precisamos de perceber como os elementos estão ligados. Precisamos de uma rede complexa.

Esta nova abordagem difere das disciplinas tradicionais, como a física, a química e a biologia, em que a ideia é reduzir os sistemas a partes e estudá-las separadamente. A metodologia utilizada nestes domínios, designada por reducionismo, conduziu ao grande sucesso da ciência moderna, revolucionando domínios tão diversos como a física e a biologia. No entanto, o reducionismo criou domínios científicos muito especializados, de tal modo que mesmo os cientistas do mesmo domínio não conseguem muitas vezes compreender o trabalho uns dos outros.

Por outro lado, o estudo de sistemas complexos envolve geralmente mais do que um domínio de investigação e exige a colaboração entre especialistas. Por exemplo, em estudos de redes do cérebro, é comum que cientistas da computação colaborarem com neurocientistas para entender problemas que permeiam as duas áreas. Assim, ao contrário das disciplinas especializadas tradicionais, o estudo da complexidade liga diferentes áreas científicas.

A ciência avançou significativamente por meio da especialização e do reducionismo, focando em compreender os elementos individuais de sistemas complexos. No entanto, para abordar a complexidade, é essencial adotar uma abordagem integradora, conectando diferentes áreas do conhecimento e explorando as interações entre seus diversos componentes.

Como a complexidade envolve o holismo, precisamos analisar como os elementos de um sistema estão conectados. Ou seja, um primeiro ingrediente para estudar um sistema complexo é sua rede de interações. Por exemplo, o gene p53 é um supressor tumoral que codifica uma proteína que desempenha um papel fundamental para o controle do ciclo celular, reparo do DNA e indução da apoptose (morte celular). Pesquisas no início desse século mostraram que assim como a interrupção de um nó altamente conectado na Internet pode causar grandes impactos, a disfunção do p53 também gera consequências graves [Vogelstein et al.]. Logo, uma simples falha em um gene gera uma cascata de outra falhas que levam ao desenvolvimento do câncer.

De maneira similar, em 2003, uma falha de software no sistema de alarme da sala de controle de uma subestação da FirstEnergy, em Akron, Estados Unidos, gerou uma queda de energia generalizada em partes do Nordeste e Meio-Oeste e em Ontário, Canadá, levando a um prejuízos de mais US$ 6 bilhões. Ou seja, quando um único elemento de um sistema complexo é afetado, isso pode levar a efeitos no sistema todo. Por isso, entender a rede de interações é tão importante.

“O reducionismo não é suficiente para explicar a complexidade dos sistemas vivos.” — Ilya Prigogine, químico e físico belga, laureado com o Prêmio Nobel de Química em 1977.

As conexões em uma rede não impactam apenas a robustez do sistema, mas também desempenham um papel crucial na propagação de informações. Quando uma pessoa é infectada por um vírus ou bactéria, o agente infeccioso pode se espalhar para seus contatos, desencadeando epidemias ou até pandemias. O mesmo princípio se aplica à disseminação de notícias falsas. Quem cria esse tipo de conteúdo pode iniciar um processo de propagação para seus contatos diretos, que, por sua vez, repassam a informação aos seus próprios contatos, afetando progressivamente uma grande parte da rede.

Um exemplo marcante é o caso do Pizzagate em 2016, uma teoria da conspiração infundada que alegava a existência de uma rede de tráfico infantil operando a partir da pizzaria Comet Ping Pong, em Washington, D.C., supostamente comandada por membros do Partido Democrata, incluindo Hillary Clinton. Essa teoria foi promovida por membros da direita radical, jornalistas conservadores e outros críticos de Clinton, especialmente em um momento em que ela já enfrentava pressão devido ao uso de um servidor de e-mail privado, algo completamente não relacionado ao caso. A desinformação foi amplamente disseminada em plataformas como 4chan, Reddit e Twitter. Hashtags como #Pizzagate chegaram rapidamente aos trending topics, acumulando milhões de menções em poucos dias.

A estrutura da rede de contatos foi essencial para que essa propagação alcançasse escala global, demonstrando como as conexões influenciam diretamente a velocidade e o alcance de processos de disseminação, sejam eles biológicos ou informacionais.

Essa importância do estudo de sistemas complexos e sua relação com os problemas atuais foi reconhecida com o Prêmio Nobel em 2021, concedido a Giorgio Parisi, Syukuro Manabe e Klaus Hasselmann, por “contribuições inovadoras para a nossa compreensão de sistemas físicos complexos”.

Um segundo ingrediente para estudar a complexidade é a modelagem de processos dinâmicos usando computadores. Basicamente, a ideia é reproduzir o mundo real dentro de um computador. Isso já ocorre muito em jogos como The Sims, que simula a vida cotidiana de pessoas, Microsoft Flight Simulator, que recria o mundo real com precisão geográfica, usando dados de satélite e inteligência artificial para representar paisagens, aeroportos e condições climáticas em tempo real; ou Cities: Skylines, que simula urbanismo, infraestrutura, economia e desafios ambientais com uma abordagem realista.

No entanto, diferentemente dos jogos, na modelagem computacional científica, o objetivo é criar algoritmos que reproduzam nossa realidade, usando dados do mundo real. Por exemplo, podemos simular a propagação de uma epidemias usando dados de transmissão do SARS-CoV-2 e determinar a melhor maneira de vacinar uma população. Ou então mapear as conexões de uma rede de neurônios, obtida experimentalmente, e simular a sincronização entre eles, de forma a entender a epilepsia, que é caracterizada por descargas elétricas anormais no cérebro. Com modelos computacionais, podemos verificar como a rede de interações afeta o funcionamento do sistema. Essa abordagem computacional permite estudar diferentes problemas, como os transtornos mentais e do desenvolvimento, as interação entre genes, a fim de entender doenças genéticas, e o efeito da extinção de espécies.

Alguns jogos de computadores objetivam reproduzir o mundo real no ambiente virtual. A modelagem computacional ocorre de maneira parecida.

Ao combinar dois elementos essenciais — conexões e simulações computacionais — , é possível estudar uma ampla variedade de sistemas em diversas áreas do conhecimento. Essa abordagem reflete o alto grau de interdisciplinaridade inerente à teoria da complexidade. As mesmas ferramentas utilizadas para investigar o cérebro podem ser adaptadas para analisar a economia mundial. Por isso, a complexidade oferece uma nova maneira de fazer ciência, promovendo a integração entre cientistas e diferentes campos de pesquisa. Por exemplo, compreender a complexidade da vida vai além do domínio exclusivo da biologia. É necessário integrar a física, para entender processos aleatórios como a difusão; a matemática, para criar modelos teóricos; a computação, para realizar simulações; a genética, para explorar os mecanismos das divisões celulares; e até mesmo a filosofia, para refletir sobre os impactos éticos e epistemológicos das descobertas. Essas áreas se conectam, assim como o próprio mundo está cada vez mais interligado.

Para estudar a complexidade, inúmeros centros de pesquisa foram estabelecidos em algumas das universidades mais renomadas do mundo. Na Universidade de São Paulo, no Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação, estudamos a complexidade há mais de uma década. Basicamente, estamos interessados nos grandes problemas mundiais. Por exemplo, temos desenvolvido métodos para aprimorara predição de epidemias de dengue e Zika, onde o objetivo é conseguir antecipar o número de casos em um ano seguinte, a fim de propiciar que governos se preparem para novas ondas (e.g. Lober et al.). Estamos também interessados em criar novos métodos computacionais para o diagnóstico de transtornos mentais e do desenvolvimento, a fim de permitir um diagnóstico baseado em dados médicos (e.g. Alves et al.), como fazemos hoje no caso do diabetes.

Em colaboração com o Banco Central do Brasil, estamos interessados em analisar a dinâmica das crises econômicas e maneiras de evitá-las (e.g. Alexandre et al.). Usando dados do clima, criamos modelos para predizer o efeito do El Niño em diferentes regiões do Brasil, a fim de nos preparar para secas e chuvas com volumes acima do esperado. Analisando dados de redes sociais, estamos interessados em entender a polarização que se tornou cada vez mais presente em nossa sociedade (e.g. Interian and Rodrigues). Ou seja, usando dados e computadores, objetivamos criar métodos para melhorar a qualidade de vida de nossa sociedade e antecipar eventos catastróficos, a fim de evitá-los ou mesmo aliviar seus efeitos. (As publicações estão organizadas por área nesse link.)

No Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação, da Universidade de São Paulo, em São Carlos, temos um grupo dedicado ao estudo da complexidade.

Apesar dos avanços significativos, o estudo da complexidade ainda enfrenta grandes desafios a serem superados. Entre eles, destacam-se a modelagem de interações temporais e de múltiplas camadas, fundamentais para descrever adequadamente a dinâmica de sistemas complexos. Por exemplo, nossas conexões sociais mudam ao longo do dia e podemos nos movimentar usando diferentes meios, como carros, ônibus, metrô ou aviões. Além disso, as heterogeneidades intrínsecas desses sistemas, como a capacidade variável de roteadores na Internet ou características específicas das espécies em ecossistemas, são frequentemente ignoradas nos modelos atuais. As interações entre diferentes processos — como o impacto de mensagens em redes sociais na disseminação de epidemias (e.g. Ventura et al.) — também são pouco exploradas. Ainda há muito o que ser explorado para que os modelos se aproximem cada vez mais do mundo real e consigam explicar a complexidade à nossa volta. O estudo de sistemas complexos está em uma fase inicial, com inúmeras descobertas ainda por vir. A era da complexidade está apenas começando.

Caso tenham curiosidade em conhecer minhas pesquisas, visitem esse link: https://sites.icmc.usp.br/francisco.

Até a próxima!

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Francisco Rodrigues
Francisco Rodrigues

Written by Francisco Rodrigues

Professor of Data Science and Complex Systems at the University of São Paulo. https://linktr.ee/francisco.rodrigues

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